Viver de todo o coração

Na tradição cristã, vocação é um chamado divino que direciona o propósito e o sentido da vida de cada pessoa. Muita gente acha que falar de vocação cristã é assunto exclusivo para o clero, religiosos e religiosas, mas não é bem assim. Cada pessoa cristã vive a sua jornada de descoberta e nela percebe-se chamada a “confiar no Senhor de todo coração” (Pr 3,5).

Essa confiança é um ato de entrega que, sendo do coração, é uma entrega afetiva. A afetividade é a dimensão humana que envolve nossos sentimentos, emoções, relacionamentos e sexualidade. Portanto, expressa também a forma como nos relacionamos com Deus. Nossos sentimentos de amor, gratidão, reverência e filiação são, por exemplo, expressões da nossa afetividade em relação ao divino que nos ama a todos, todos, todos.

Afeto

A afetividade é a chave para vivermos de todo o coração um encontro íntimo com o Deus de ternura. Se é verdade que vocação tem a ver com chamado divino, então ela não é um assunto apenas para as juventudes em busca de uma profissão ou estado de vida. Vocação é uma interpelação para cada pessoa cristã que busca escutar o Senhor. Ele deseja dar a conhecer a Sua vontade desde o nosso interior, no santuário de nossa consciência formada à luz do Evangelho de Jesus que é libertação e amor incondicional (Gaudium et spes, n.16).  

Por essa razão, a nossa percepção da vontade divina pode – e deve – evoluir ao longo da vida. Na medida em que crescemos em maturidade e afetividade em nosso relacionamento com Deus, isso nos permite ter uma “audição” mais aguçada para melhor responder: “Eis-me aqui, Senhor, envia-me!” (Is 6,8). Muitas vezes, é preciso colocarmo-nos em novos caminhos de resposta ao chamado de Deus, que quer vida plena para todas as pessoas (Jo 10,10).

Sacramentos

Ao contrário do que alguns dizem, para as católicas e os católicos LGBT+, viver de todo o coração pode incluir também a vivência sacramental como meio para o encontro e a escuta que nos aproximam de Deus (nota de rodapé n. 351 do n.305 Amoris Laetitia). Os sacramentos têm a vantagem de nos envolvem afetiva, espiritual e corporalmente em suas realidades. O Batismo é verdadeiro banho espiritual (Tt 3,5), um mergulho no amor de Deus, que nos acolhe como seus filhos e filhas e nos convida a viver uma vida nova em Cristo. Na vida da católica e do católico LGBT+, o batismo pode ser vivido como uma experiência que liberta do peso da culpabilidade de amar e ser quem se é. A culpabilidade internalizada é uma realidade pecaminosa imposta pela doutrina intrinsecamente desordenada da Igreja sobre a sexualidade humana. No batismo, a católica e o católico LGBT+ são mergulhados no amor incondicional de um Pai que supera a mancha do pecado da LGBTfobia por si mesmo que a católica e o católico possam sofrer contaminação.

A Crisma, por sua vez, é um perfumar-se de Cristo (2Cor 2,15), potencializando nossos dons para a missão de sermos discípulos de Cristo no mundo. Ora, como já apontou um texto da Santa Sé, “os homossexuais têm dons e qualidades a oferecer à comunidade cristã” (Relatio post disceptationem do Sínodo Extraordinário de 2014, n. 50). A batizada e o batizado LGBT+ podem descobrir nesse sacramento que sua dissidência sexual e/ou de gênero é um dom que expressa a diversidade da Criação desejada e amada por Deus na natureza humana. Perfumados de Cristo, os fiéis LGBT+ são sinais da fragrância do Espírito Santo que doa a diversidade dos dons, talentos e qualidades para o serviço do Reino de Deus que é justiça, paz e alegria (Rm 14,17).

Já a Eucaristia é alimentar-se. Jesus nos disse: “Tomai e comei, isto é o meu corpo” (Mt 26,26). Nossos corpos, banhados e perfumados, encontram o corpo eucarístico de Cristo que faz comunhão conosco ao redor da mesa que não exclui ninguém. Como lembra o papa Francisco, “a Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos. (…) a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa” (Evangelii Gaudium, n.47). Alimentados pela comunhão eucarística, a católica e o católico LGBT+ podem descobrir ao redor da mesa com os irmãos e irmãs que a vontade de Deus para suas vidas passa pela plena vivência de sua afetividade e sexualidade. Desse modo, a cristã e o cristão LGBT+ dão-se conta de que Deus os criou assim, viu que era muito bom (Gn 1,31) e os chama à comunhão com Ele por meio da união de seus corpos dissidentes com o Corpo doado de seu Filho Jesus, sinal da nova e eterna aliança de fé e amor com os humanos de todos os gêneros.    

Além disso, a Confissão, também conhecida como Reconciliação, e a Unção dos Enfermos são experiências sacramentais esporádicas, comparadas a tomar um remédio. Não são o alimento – que é a Eucaristia –, mas, em alguns casos, podem ajudar quando estamos em sofrimento e/ou doentes. Às católicas e católicos LGBT+ vale um conselho dado pelo papa Francisco aos participantes de um congresso na Pontifícia Universidade Urbaniana, em 2015: “É melhor ficar longe dos sacerdotes rígidos, eles mordem!”. Uma mordida, para quem já está machucado ou machucada, pode ser uma ferida difícil de curar, e até deixar cicatrizes. Por isso, os fiéis LGBT+ que desejam receber algum desses dois sacramentos, devem procurar presbíteros aliados, isto é, aqueles que não se esqueçam que “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível” (Evangelii Gaudium, n.44).

Diversidade de vocações

Essas experiências de uma vida sacramental, vividas de todo o coração, podem ajudar a colocarmo-nos na trilha da descoberta ou das reformas de nossa vocação. As uniões em Cristo que os casais podem viver e os ministérios de serviço e liderança dentro das comunidades cristãs são algumas expressões da plenitude de vocações cristãs (Amoris Laetitia, n.181; 304-306).

Texto descritivo da imagem

Assim como todos os outros fiéis, as batizadas e batizados LGBT+ são chamados a amar e deixarem-se amar com coragem e generosidade. Algumas católicas e católicos LGBT+ descobrem na união conjugal a experiência do “apoio mútuo” e “precioso” que pode chegar “até ao sacrifício” (Relatio post disceptationem do Sínodo Extraordinário de 2014, n. 52). Com frequência, o casal LGBT+ toma consciência que a fecundidade esponsal de sua união, pela fé, brota do amor generoso que emana da união de Cristo e sua Igreja (Ef 5, 22-32). Infelizmente, o matrimônio católico ainda é marcado por uma compreensão restrita. Até que isso mude, um casal de cristãs ou cristãos LGBT+ pode celebrar a sua união com uma benção pastoral para as duas pessoas LGBT+. Para isso, basta procurar um clérigo para receberem o gesto cristão segundo as orientações do documento Fiducia Supplicans.

Por fim, pode acontecer de que alguns fiéis LGBT+ escolham a vida religiosa consagrada e/ou o sacramento da Ordem, como ocorre atualmente em boa parte das instituições católicas e seminários diocesanos. Embora existam documentos que proíbam, na prática o ingresso é permitido desde que a pessoa esconda sua dissidência sexual e/ou de gênero. Nesses casos, é fundamental que a católica e o católico LGBT+ estejam conscientes das motivações de sua escolha vocacional e das consequências que ela implica. Esconder a própria dissidência é uma escolha que dificulta a vivência afetiva, a liberdade interior e a autenticidade da pessoa humana. Essas dificuldades, muitas vezes, comprometem o discernimento da vontade de Deus e da própria vocação. Mesmo assim, há diversos exemplos de boas e bons religiosos e religiosas, e de bons presbíteros LGBT+ na Igreja.

Em suma, viver de todo o coração implica abraçar a vocação como um chamado divino em constante evolução. A vivência sacramental é um meio privilegiado para esse encontro e escuta, aproximando-nos de Deus de forma afetiva, espiritual e corporal.


João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.

Imagem: Glenio Bianchetti (1928-2014). Ciranda, 1988

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Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).

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