Cinema, conclave e escuta evangélica

Osmar C. A. Ferreira

Às vésperas do conclave, cresce no mundo católico — e além dele — a expectativa sobre os rumos da Igreja. Mais do que um evento institucional, o conclave é também um rito de passagem, momento espiritual, ritual e simbólico. E é justamente nesses tempos de transição que o cinema pode se tornar um espelho sensível: não como registro factual, mas como linguagem capaz de iluminar contradições, fazer perceber os sopros do Espírito e os silêncios da história.

Filmes como O Conclave (2006), Dois Papas (2019) e Habemus Papam (2011) são frequentemente lembrados — e com razão. Mas há um repertório mais amplo, mais arriscado e, muitas vezes, mais profético. Obras que não apenas dramatizam a eleição de um papa, mas que interrogam as estruturas da Igreja, denunciam seus silêncios, revelam suas fragilidades e apontam caminhos de conversão.

Este ensaio propõe um itinerário por quinze filmes que abordam, de maneiras diversas, o universo do papado, da Cúria Romana e da fé cristã. Agrupados por afinidade narrativa e simbólica, esses filmes revelam que a Igreja é mais do que uma instituição: é uma realidade viva, feita de memórias, disputas, esperanças e crises — onde o Evangelho precisa ser continuamente escutado.

E é essa escuta evangélica que o cinema, por vezes, sabe provocar com mais liberdade do que os próprios discursos oficiais. Ao captar a dúvida de um cardeal, a rebeldia de um padre, a resistência de uma freira, o silêncio de um papa ou a inquietação de uma mulher esquecida nos bastidores, essas histórias nos convidam a reabrir os ouvidos da alma. Para que, mais do que um novo pontífice, surja também uma nova disposição eclesial: menos preocupada em ensinar desde o alto, mais disposta a escutar com o coração.

I – Discernimento, resistência e testemunho

Este bloco reúne histórias marcadas pela tensão entre fé e história, protagonizadas por pessoas maduras que se veem confrontadas com o desafio da coerência entre o Evangelho e a vida. Em contextos de escuridão — sob regimes nazistas, fascistas, autoritários ou absolutistas —, esses filmes retratam figuras eclesiásticas que, mesmo cercadas por estruturas opressoras, optam por seguir a voz da consciência iluminada pela fé. Não o fazem por heroísmo, mas por fidelidade: à dignidade humana, à Palavra que liberta, à memória dos esquecidos.

Aqui, o anúncio do Evangelho não se dá nos púlpitos nem nas elaboradas liturgias da Cúria, mas nas prisões, nas aldeias esquecidas, nos campos de concentração, nos campos de guerra. Trata-se de um querigma encarnado — silencioso, por vezes desobediente, sempre solidário — que se expressa como profecia e martírio. Faz ecoar o ensinamento da Gaudium et Spes:

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo.

As obras selecionadas neste bloco revelam que a salvação não se impõe pelo alto, mas emerge do fundo: da compaixão, da escuta e do risco partilhado com os últimos. Como pequenas parábolas visuais, esses filmes atualizam o testemunho dos que ousaram viver a fé como liberdade, compromisso e entrega.

Amen. (Amém.) – Costa-Gavras, 2002 [IMDb]
Um oficial nazista e um jovem jesuíta tentam alertar o mundo — e o Vaticano — sobre o extermínio sistemático dos judeus. Com um tom sóbrio e crítico, o filme denuncia o silêncio das instituições diante da barbárie e expõe o custo ético do conformismo. Uma narrativa cortante sobre política, fé e compromisso ético.

The Scarlet and the Black (O Escarlate e o Negro) – Jerry London, 1983 [IMDb]
Baseado na história real de Monsenhor Hugh O’Flaherty, o filme retrata a rede clandestina organizada no Vaticano para proteger judeus e prisioneiros aliados durante a ocupação nazista em Roma. Gregory Peck interpreta um clérigo corajoso que, ao arriscar tudo pela vida dos outros, encarna o Evangelho vivido na clandestinidade.

Der neunte Tag (O 9º Dia) – Volker Schlöndorff, 2004 [IMDb]
Inspirado nos diários do padre Jean Bernard, o filme acompanha o luxemburguês Henri Kremer, libertado por nove dias do campo de concentração de Dachau com uma missão sinistra: convencer seu bispo a colaborar com o regime nazista. Pressionado por um oficial da SS, ex-seminarista convertido à ideologia do Reich, Kremer vive um dilema existencial entre fidelidade à consciência cristã e sobrevivência. Com atmosfera intimista e atormentada, o filme reflete sobre culpa, liberdade interior e o preço do testemunho em tempos de horror.

The Mission (A Missão) – Roland Joffé, 1986 [IMDb]
Nos séculos XVII e XVIII, jesuítas fundam missões entre o povo Guarani, desafiando os interesses da Coroa e da própria Igreja. No centro do drama estão o Padre Gabriel (Jeremy Irons), um missionário que evangeliza pela música, e Rodrigo Mendoza (Robert De Niro), um mercador de escravos espanhol consumido pela culpa, que encontra redenção na fé e passa a defender os mesmos indígenas que antes havia explorado. Ambientado no contexto da Guerra Guaranítica (1750–1756), após o Tratado de Madri, o filme dramatiza a resistência indígena à expulsão de suas terras pelos impérios coloniais. Entre harpas e espadas, fé e violência, The Mission é uma parábola sobre martírio, entrega e fidelidade ao Evangelho. A trilha sonora de Ennio Morricone e a fotografia majestosa ampliam a força trágica e espiritual da narrativa.

In nome del Papa Re (Em Nome do Papa Rei) – Luigi Magni, 1977 [IMDb]
Monsenhor Colombo da Privano (Nino Manfredi), juiz da corte pontifícia no século XIX, vive uma crise moral ao descobrir que o jovem revolucionário condenado à morte pela Igreja é seu próprio filho. Cansado da cumplicidade com um regime que recorre à violência para manter o poder temporal, deseja renunciar à função. O filme expõe, com amargura e humanidade, a tensão entre obediência institucional e fidelidade à consciência. Uma poderosa crítica ao uso repressivo da fé e um retrato comovente de ruptura interior.

Don Zeno: L’uomo di Nomadelfia – Gianluigi Calderone, 2008 [IMDb]
Inspirado na vida de Dom Zeno Saltini, o filme narra a criação da comunidade de Nomadelfia, fundada para acolher crianças abandonadas em meio à guerra e à miséria. Entre enfrentamentos com o fascismo e tensões com a própria Igreja, o protagonista encarna a fé como compromisso e profecia. Figuram no enredo os papas Pio XII e João XXIII, e o cardeal Montini, futuro papa Paulo VI.

II – Sátira e desencanto

Neste grupo, encontramos filmes que abordam a fé cristã e a instituição eclesial a partir das periferias — não geográficas, mas simbólicas e existenciais. Com tons de farsa, crítica social e ironia afetuosa, essas obras desconstroem as formalidades do poder religioso para iluminar aspectos menos reverenciados da espiritualidade: o humor, a fragilidade, a resistência popular e o absurdo.

Esses filmes, com linguagem simbólica e poética, oferecem uma crítica contundente pela via do riso e do desencanto. Em seu próprio estilo, revelam que o Evangelho também se revela no inesperado, nas rupturas, e na discreta epifania do gesto cotidiano.

Don Camillo monsignore… ma non troppo (As Últimas Aventuras de Dom Camilo) – Carmine Gallone, 1961 [IMDb]
Neste episódio da série Don Camillo o velho embate entre o padre Camillo (Fernandel) e o político Peppone (Gino Cervi) ganha novos contornos: agora, em Roma, ambos promovidos a monsenhor e senador, precisam voltar à cidade natal para mediar conflitos paroquiais — como o casamento do filho de Peppone e a possível demolição de uma capelinha popular. Com humor leve e crítica social, o filme mostra que, mesmo distantes de Roma, é na vida comum que Igreja e política revelam seus impasses mais autênticos.

L’udienza (A Audiência) – Marco Ferreri, 1972 [IMDb]
A obsessão de Amedeo (Enzo Jannacci) por uma audiência com o Papa torna-se uma parábola amarga sobre a busca de sentido e o desencanto com as instituições. Interpretado com melancolia e humor, Amedeo percorre os corredores do Vaticano como um peregrino sem resposta, enquanto o pontífice permanece inalcançável. Inspirado livremente em O Castelo, de Kafka, Marco Ferreri transpõe a trama para os dias atuais, direcionando sua crítica à burocracia moderna e à opacidade da Igreja. Com participações marcantes de Claudia Cardinale, Ugo Tognazzi e Michel Piccoli, L’udienza ganha densidade simbólica e teatralidade crítica, questionando com ironia a distância entre o poder espiritual e o povo.

Il Santo Soglio – Mario Monicelli, 1976 [IMDb]
Neste episódio satírico do filme coletivo italiano Signore e signori, buonanotte, um conclave do século XVI se transforma numa violenta disputa entre cardeais corruptos e ambiciosos. A eleição do novo papa é marcada por intrigas, assassinatos e falsidade, até que um candidato improvável é escolhido — e surpreende a todos com um gesto de lucidez e justiça. Com humor ácido, o episódio desmonta a idealização do poder eclesial e propõe uma crítica feroz à instrumentalização da fé pelo jogo político.

III – Poder e consciência

Neste terceiro bloco de filmes, busca-se olhar o trono pontifício não como símbolo de poder triunfante, mas como lugar de consciência ferida, de decisões difíceis e de humanidade exposta.

Os filmes reunidos neste bloco abordam diretamente o papado, os conclaves e o peso simbólico da Cátedra de Pedro. Aqui, vemos cardeais e papas enfrentarem crises íntimas, embates de visão e conflitos entre tradição e transformação. São narrativas que tornam visível o desafio espiritual do governo da Igreja: exercer a autoridade não como dominação, mas como serviço.

Nesses filmes percebemos o quanto a missão de liderar a Igreja exige mais do que doutrina e poder — exige humanidade reconciliada. Nessa galeria de purpurados, o cinema revela o abismo e a esperança de uma Igreja que, mesmo ferida, continua buscando o Espírito.

The Shoes of the Fisherman (As Sandálias do Pescador) – Michael Anderson, 1968 [IMDb]
Kiril Lakota (Anthony Quinn), arcebispo ucraniano libertado de um gulag soviético, é inesperadamente eleito papa em plena Guerra Fria, quando o mundo vive sob o risco de uma catástrofe nuclear. Assumindo a missão com humildade e coragem, o novo pontífice renuncia ao luxo e mobiliza a Igreja em favor da paz e da solidariedade global. Ao seu lado, o teólogo jesuíta David Telemond (Oskar Werner) — personagem inspirado em Pierre Teilhard de Chardin — personifica a tensão entre ousadia teológica e vigilância doutrinal. O filme oferece uma visão épica e espiritual do papado como serviço reconciliador e profético. Um retrato da liderança eclesial como escuta do Espírito em tempos de incerteza global.

The Agony and the Ecstasy (Agonia e Êxtase) – Carol Reed, 1965 [IMDb]
Narra a relação entre o Papa Júlio II (Rex Harrison) e Michelangelo (Charlton Heston), o filme retrata a tensão entre autoridade papal e liberdade criativa durante a pintura da Capela Sistina. Mais do que uma cinebiografia artística, a obra expõe o embate entre poder e inspiração, tradição e beleza.

The Cardinal (O Cardeal) – Otto Preminger, 1963 [IMDb]
Stephen Fermoyle (Tom Tryon), um jovem sacerdote americano, percorre um longo caminho até o cardinalato, passando por dilemas éticos envolvendo racismo, aborto, antissemitismo e nazismo. O filme acompanha sua formação moral e espiritual, revelando as exigências contraditórias de ser fiel à doutrina e atento à vida concreta.

Conclave – Edward Berger, 2024 [IMDb]
Após a morte de um papa, os cardeais reúnem-se para eleger seu sucessor. Entre conspirações e revelações pessoais, emerge um candidato improvável: um cardeal desconhecido, até então “in pectore”, que desafia o sistema. Com elenco notável — Ralph Fiennes, Stanley Tucci, Isabella Rossellini —, o filme combina suspense político com drama espiritual. Uma poderosa alegoria sobre renovação e escuta do Espírito, marcada por uma reviravolta inesperada.

The Two Popes (Dois Papas) – Fernando Meirelles, 2019 [IMDb]
Inspirado na transição entre Bento XVI (Anthony Hopkins) e Francisco (Jonathan Pryce), o filme é um diálogo entre visões, feridas e reconciliação. Uma obra sobre perdão, escuta e abertura ao futuro.

Habemus Papam – Nanni Moretti, 2011 [IMDb]
Ao ser eleito, o cardeal Melville (Michel Piccoli) entra em crise e se recusa a assumir o trono pontifício. Perambula por Roma em busca de sentido. Com tom melancólico e cômico, o filme questiona o peso do papado e a fragilidade humana diante da vocação. Uma sátira afetiva sobre poder, impotência e a liberdade de dizer “não”.

Diante dessa galeria de histórias e rostos, resta-nos acompanhar com atenção e esperança o próximo conclave. Que o sucessor de Pedro seja menos um homem de respostas “ex cathedra” e mais alguém capaz de fazer perguntas com o coração aberto — perguntas como as que ecoam silenciosas nesses filmes: onde estamos falhando em escutar? A quem deixamos de alcançar? Que lugar damos aos pequenos, às mulheres, aos que duvidam? Que seja um pastor com cheiro do rebanho, sensível às feridas da humanidade e disposto a caminhar com ela. Que veja na crise uma oportunidade de conversão. E que, como no cinema, saiba que a autoridade mais fecunda é aquela nascida do discernimento, da compaixão e da fidelidade ao Evangelho de Jesus.

Se eu tivesse que escolher um filme para ser exibido antes do início do conclave, optaria por Il vangelo secondo Matteo (O Evangelho Segundo São Mateus), de Pier Paolo Pasolini, de 1964 [IMDb]. Não apenas pela sobriedade poética com que a narrativa é conduzida, mas sobretudo pela sua fidelidade essencial ao texto evangélico — nua, despojada, profundamente humana. É um Cristo que caminha entre os pobres, que desafia as autoridades, que acolhe com olhar direto e convoca à conversão. E talvez o gesto mais revelador esteja fora da tela: a dedicatória do diretor a João XXIII. Nela, Pasolini — ateu, marxista, homossexual — reconhece naquele papa um homem do Evangelho. Que outro sinal seria mais eloquente para lembrar à Igreja que a santidade começa na escuta e termina na compaixão? Que esse filme, mais que um marco estético, seja espelho e clamor — para que o conclave que se aproxima também nasça do espírito das bem-aventuranças.



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Nasci em Belém do Pará, moro em Brasília. Sou bibliotecário desde 1985.

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