Magistério e Vontade de Deus: LGBTs no documento Fiducia Supplicans
João Melo
A Igreja Católica dispõe de uma diversidade de textos doutrinais cujo peso de autoridade varia conforme o autor e a natureza do documento. Constituições, Decretos, Encíclicas, Instruções e Bulas são alguns dos exemplos dessa variedade. No geral, são textos escritos pelas autoridades da Igreja e, em seu conjunto, são conhecidos como Magistério (ensino) oficial da Igreja. Junto com a Bíblia e a Sagrada Tradição, formam o tripé da Revelação de Deus, segundo a compreensão católica. A missão do Magistério é interpretar a Bíblia e a Tradição para ensinar aos fiéis sobre fé e costumes.
Como é escrito um documento da Igreja?
Os processos de redação dos documentos do Magistério da Igreja normalmente são longos e, muitas vezes, cheio de episódios controversos. Um bom exemplo é o texto Humanae Vitae, de São Paulo VI, que dentre outras coisas, proibiu aos católicos o uso de métodos contraceptivos, como a famigerada camisinha. No livro “O nascimento de uma encíclica”, o monsenhor italiano Gilfredo Marengo mostra os bastidores da história de disputa por trás do polêmico texto pontifício.
No geral, para a escrita de um texto oficial da Igreja, um grupo de trabalho formado por especialistas redige as primeiras versões que, depois, são debatidas e submetidas a revisões de outros departamentos da própria Santa Sé, antes de serem publicadas como texto oficial. Esse procedimento costuma ocorrer mesmo com os textos que são assinados pelos papas.
Em um sínodo (reunião de bispos) sobre a família no ano de 2015, o papa Francisco quebrou o sigilo da votação dos parágrafos do relatório final da reunião, sem identificar individualmente os votantes, e o resultado mostrou que parágrafos sobre comunhão para pessoas divorciadas e recasadas, e a abordagem da Igreja em relação a pessoas LGBTs foram os mais disputados.
Bispos, teólogos e especialistas divergem entre si sobre muitos aspectos da doutrina católica. Entretanto, essas diferenças de opiniões não aparecem nos textos oficiais.
Textos dos Dicastérios Romanos não são resultado de uma redação “psicográfica” em que um time de teólogos experts da doutrina tem acesso direto e privilegiado a algum conhecimento sobre as disposições divinas. Se assim o fosse, estaríamos diante de documentos de uma redação quase que mágica e sobrenatural.
Vontade de Deus e documentos da Igreja
A apressada e imediata identificação entre Vontade de Deus e ensinamentos das autoridades da Igreja é muito perigosa. Católicos podem incorrer no pecado da idolatria desses textos oficiais do Magistério. É importante saber como e quando estes textos podem facilitar – ou não – o conhecimento da Vontade de Deus e a formação da consciência do fiel.
Ademais, o modo como Deus revela a sua Santa Vontade não se esgota nos pronunciamentos oficiais das autoridades eclesiais, como se esses documentos fossem o único canal com que Deus se comunica com os humanos, ignorando as orações e se fazendo ausente da vida de bilhões de cristãs, cristãos e pessoas de bem pelo mundo afora. Seria engarrafar demasiadamente a onipotência amorosa de Deus que só fala hoje pelo texto da Santa Sé.
Deus comunica a Sua Vontade de muitas maneiras, inclusive pela relação pessoal e comunitária do e da fiel com seu Criador através do discernimento, oração e atenção aos sinais dos tempos. Como ensina Santo Inácio de Loyola: “deixe o Criador agir diretamente com a criatura, e a criatura com seu Criador e Senhor” (Exercícios Espirituais, n.15).
Os cardeais e a equipe de staff responsáveis pela redação de textos eclesiais de carácter ordinário não podem conhecer a Vontade de Deus sem também muita oração, discernimento e escuta aos sinais dos tempos. O Mesmo Deus que pode falar aos seus corações, pode se comunicar igualmente com cada fiel no planeta.
O discernimento para conhecer a Vontade de Deus requer oração, isto é, uma vida espiritual de verdadeira relação pessoal com Deus, e atenção aos sinais dos tempos, lugares e pessoas. Contemplativos na ação, podemos buscar e compreender a Vontade de Deus que sempre se dá em contexto. Deus se revela na história – e não fora dela.
Assim, um documento de caráter universal, como geralmente são os textos vaticanos, deveria ter em conta a abrangência dessa autêntica experiência de fé e escuta dos sinais de Deus na história. É estranho quando um texto oficial da Santa Sé depõe de lado a realidade habitada por Deus no tempo, nos territórios e no meio do povo de Deus.

O documento Fiducia Supplicans
Penso, por exemplo, na festejada – ou rejeitada – Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre o significado pastoral das bençãos, o documento Fiducia Supplicans, publicado em 2023, que abriu a possiblidade de casais recasados, divorciados e homoafetivos receberem uma benção pastoral.
Por pelo menos cinco vezes, esse documento faz menção a Vontade de Deus. Em uma dessas menções, quando fala dos casais homoafetivos, diz: “A Igreja acolhe todos aqueles que se aproximam de Deus com um coração humilde, acompanhando-os com aqueles auxílios espirituais que permitem a todos compreender e realizar plenamente a vontade de Deus em sua existência” (n.32).
Grupos mais conservadores, descontentes com a possiblidade de ver casais homoafetivos serem abençoados, logo trataram de reduzir a compreensão desse texto dizendo que, de acordo com os documentos da Igreja, a Vontade de Deus para uma pessoa LGBT é o celibato compulsório, então – pasmem -, disseram que a benção teria como objetivo ajudar esses casais a se separarem e viverem o celibato compulsório, isto é, sem relações afetivo-sexuais para sempre.
Esses grupos conservadores têm razão quando dizem que os documentos da Igreja propõem o celibato compulsório para todas as pessoas LGBTs. Mas, como explicamos acima, não podemos engarrafar demasiadamente a onipotência amorosa de Deus que só comunicaria Sua Vontade hoje pelos textos da Santa Sé. Essa diferenciação é teologicamente precisa e necessária para evitar uma visão simplista e dogmática dos textos da Igreja.
Pare e pense comigo. Quantos casais LGBTs procuram uma Igreja, um diácono, padre ou bispo para receber uma benção pastoral por que querem se separar e viver o celibato compulsório? O pecado da idolatria aos textos do Magistério fez com que esses grupos conservadores negassem a realidade dos casais homoafetivos, que também é habitada por Deus. O próprio texto da Declaração Fiducia Supplicans diz que a benção é para elevar tudo o que é “verdadeiro, bom e humanamente válido, presente em suas vidas e relações” (n.31).
A maior parte dos fiéis LGBTs que vivem em uniões homoafetivas e buscam a benção pastoral da Igreja já entenderam que viver suas relações homoafetivas, com tudo o que elas têm de “verdadeiro, bom e humanamente válido”, é a Vontade de Deus para eles – e não o celibato compulsório. Entenderam que Deus habita em suas histórias de casal e no amor que têm uns para com os outros. Ler o texto da Santa Sé e fechar os olhos para a realidade vivida por esses casais é fechar-se a compreensão de como Deus comunica Sua Vontade para essas pessoas.
O teor da benção pastoral
A benção pastoral que o documento se refere é o mesmo que uma benção espontânea. Vem-me à memória aquelas bençãos devocionais de objetos como terços, medalhas etc. que a gente pede a um padre, no fim de uma reunião pastoral, ou na saída da Igreja, depois da celebração. Não tiro o mérito do avanço que é ter a autorização vaticana para uma benção de casais homoafetivos, mas essas bençãos não podem ser tratadas como um “prêmio de consolação”.
Uma benção espontânea é como a benção de cachorros em praça pública no dia de São Francisco de Assis. Trata-se de uma benção que não é litúrgica, uma benção que não é sacramental. Benzer um cachorro ou um terço, não é o mesmo que benzer um casal que se ama. Na verdade, a benção espontânea toca em uma ferida real para os casais homoafetivos: trata-se de uma benção marginalizada para os marginalizados da vida e missão da Igreja. É esta a sensação que muitas pessoas LGBTs sentem na Igreja. São as migalhas jogadas aos cachorrinhos (Mc 7,27-28; Mt 15,26-27).

Há, ainda, um abismo entre o que os documentos eclesiais dizem e a realidade vivida por casais homoafetivos. Não é preciso ir muito longe. Bastaria que a equipe de experts na redação dos textos vaticanos andasse um pouco pelos corredores da cidade-estado sede da Igreja para vislumbrar os sinais dos tempos e conhecer a verdade que liberta: os clérigos LGBTs de todo o mundo que frequentam aquele espaço certamente poderiam ajudar a contribuir na construção de um texto mais receptivo e acolhedor. Afinal, se muitos LGBTs podem receber o sacramento da ordem, porque outros não podem receber uma benção litúrgico-sacramental?
Enquanto esse dia não chega, e a Igreja não brilha para todos como uma mãe e casa acolhedora, com uma palavra bendita, espontânea, litúrgica e sacramental, sem distinção a todos, todos, todos, seguiremos como mulher siro-fenícia, recolhendo as migalhas da mesa (Mc 7,27-28; Mt 15,26-27). Temos a esperança de que um dia, superaremos a exclusão eclesial e o Evangelho será plenamente vivido. Não seremos abençoados como objetos ou como cachorros, mas nossos amores serão reconhecidos como sacramento da beleza e da diversidade desejada e amada pelo Criador de todas as coisas. Nesse dia, todos os cristãos e cristãs serão benditos e abençoados porque as palavras de condenação cessarão, o ódio e o preconceito não terão mais voz na escrita institucional. E nós, todos, todos, todos, nos sentaremos à mesa como irmãos e irmãs. Oxalá esse dia não tarde mais. Amém!
João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.
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Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).
