Intrinsecamente desordenada
João Melo
A doutrina da Igreja Católica sobre o celibato obrigatório pode ser considerada intrinsecamente desordenada, especialmente ao ser aplicada tanto às pessoas da vida consagrada e do clero quanto às cristãs e cristãos LGBTs. Para ambos os grupos, a Igreja ensina que é necessário viver sem relações afetivo-sexuais para sempre. Não raro, estamos falando do mesmo grupo do povo de Deus, já que muitas pessoas LGBTs também estão na vida consagrada ou no clero.
Se o celibato é um dom, como ensina a própria doutrina da Igreja, ele não deveria ser obrigatório. Esse dom deveria ser abraçado com liberdade e gratuidade, e não imposto como condição para viver conforme a vontade de Deus. O teólogo e formador de seminaristas Donald Cozzens, autor de livros sobre o celibato, afirma que se trata de um dom raro, vivido genuinamente por pouquíssimas pessoas. E mesmo para essas, muitas vezes, o celibato é marcado por sofrimento profundo e mutilação afetiva.
Que tristeza ver tantas e tantos jovens acreditando que Deus se agrada com sua frustração afetivo-sexual. Quantas pessoas, refugiadas na instituição que condena suas experiências sexuais, acabam vivendo-as à margem, sem nunca integrar a verdade de quem são à plenitude de suas vidas. Presas pelo sigilo da vergonha, da culpa e do medo, constroem uma vida dupla, divididas entre a fé professada e a vida vivida, entre a sexualidade e a espiritualidade.
As autoridades da Igreja têm plena ciência das dificuldades que membros da vida consagrada e do clero — LGBTs ou não — enfrentam para viver o celibato obrigatório. Sabem também da luta das cristãs e cristãos LGBTs para conciliar suas identidades e afetividades com os ensinamentos da Igreja. No entanto, muitas autoridades religiosas optam por ignorar essa realidade e, frequentemente, preferem escondê-la para não comprometer sua credibilidade.
Essa negação da realidade, motivada pelo medo de confrontar verdades desconfortáveis, é uma grande hipocrisia que marca a vida da Igreja nos tempos atuais. Enquanto isso, vidas são silenciadas, e corações permanecem divididos.
A crise de vocações religiosas e o adoecimento espiritual, emocional e psíquico de pessoas consagradas, membros do clero e católicos e católicas LGBTs são consequências diretas dessa doutrina intrinsecamente desordenada, que mascara uma realidade eclesial complexa e dolorosa.
Reconheço que é improvável esperar uma mudança nessa doutrina da Igreja a curto prazo. A história mostra que as autoridades eclesiásticas podem levar séculos para revisar um ensinamento. Nenhum de nós viverá séculos para ver essa mudança.
O que podemos fazer, então, é romper internamente com a crença nessa doutrina insidiosa e, ainda assim, aos que desejarem, permanecer católicos e membros da Igreja. O celibato obrigatório, embora valorizado por segmentos religiosos mais conservadores, não ocupa um lugar de destaque na hierarquia das verdades da fé. Ele não é um dogma. Em termos simples, não é necessário acreditar no celibato obrigatório para ser um bom cristão católico, assim como não é essencial acreditar que o uso de preservativos em relações sexuais é errado — outra doutrina retrógrada da Igreja.
Na verdade, como ensina o papa Francisco em Amoris Laetitia, n.37, a cristã e o cristão católico são chamados a formar sua consciência moral, e não a substituí-la pela doutrina católica. Isso significa responder o melhor que se pode ao Evangelho, mesmo em meio aos limites e condicionamentos – inclusive limites e condicionamentos doutrinais da própria instituição. A cristã e o cristão católico são chamados a realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas doutrinais, buscando a verdade e a plenitude de suas vidas com coragem e fé.
João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.
Imagem: Ana André. Escada do Desejo, 1989. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
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Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).
