O perfume do desperdício ou do amor? Entre Judas Iscariotes e Maria de Betânia

A unção em Betânia (Jo 12, 1-11) acontece pouco antes da entrada de Jesus em Jerusalém, onde vai acontecer a Paixão de Cristo. Jesus têm consciência de que sua vida está em perigo e que a qualquer momento, podem matá-lo. Aquela não era mais uma visita de Jesus aos seus amigos Lázaro, Marta e Maria, como foram as demais. Por isso, o clima parece mais pesado e sorumbático do que o comum. Talvez essa fosse a última visita, e, nessa altura, todos sabiam disso.

O Cenário em Betânia: A Última Visita de Jesus

Em Betânia, Jesus busca conforto, amizade e aconchego antes de seguir para o enfrentamento com as autoridades judaicas e romanas que ele vai encontrar em Jerusalém. Jesus vive a vulnerabilidade humana da necessidade de amor e apoio em um momento difícil de sua vida.

O Gesto de Maria: Amor em Forma de Extravagância

Maria de Betânia, então, faz um belo e comovente gesto de amor desinteressado e profundo ao ungir os pés de Jesus com um vidro de perfume muito caro. Judas Iscariotes, porém, em sua racionalização que o impede de afetar-se pela beleza do momento, reclama do desperdício, justificando que com aquele dinheiro poderia alimentar alguns pobres. Jesus, no entanto, acolhe o gesto de amizade de Maria e repreende Judas. Gastar um perfume valioso derramando-o aos pés de Jesus foi a forma como Maria encontrou para expressar a verdade do seu amor por Ele. Quais são as formas que encontramos para expressar a verdade de nossos amores?

A Racionalização de Judas: O Mal Disfarçado de Bem

Maria poderia ter achado vergonhoso demais abaixar-se e ungir os pés de Jesus na frente de seus próprios irmãos e dos discípulos de Jesus. Para que fazê-lo assim, aos olhos dos outros, publicamente? Ela não poderia ter guardado para si o seu desejo de manifestar o carinho que tinha por Jesus ou ao menos tê-lo feito de uma forma mais discreta?

Maria poderia também ter achado extravagante demais o seu gesto. Qual a necessidade disso? Por que gastar tanto com um perfume tão caro e ainda mais para derramá-lo nos pés? Que desperdício! Mas Maria, se chegou a pensar assim, não cedeu às tentações de dissuadi-la da epifania de seu gesto de amor. Vergonha, medo e repressão afetiva estavam mais para o discurso de Judas, que já estava sob o influxo do mal espírito.

Muitas vezes, eu escutei frases como essa de Judas ou essas das tentações que Maria pode ter atravessado. Orientações para não demostrar sentimentos e não dar a conhecer em público meus amores. Era uma estratégia sutil de incutir em mim vergonha e medo de demostrar carinho e afeto. Nas vezes que me pediram descrição pública para não deixar que as pessoas percebessem que eu era um homem gay, estavam me dizendo, nas entrelinhas, que quando um homem demonstra afeto por outro homem, isso é inadequado. O pecado grave do preconceito assume muitas formas e se dissimula, assim como o racismo, mas não cessa de reaparecer, “demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas” (Fratelli Tutti, n.20). Assim como Maria de Betânia não tinha motivos para se envergonhar de amar Jesus e demostrar esse amor ungindo seus pés de perfume caro, eu também não tenho razões para me envergonhar de minha orientação sexual, e do amor que tenho pelo meu companheiro.

Lições de Jesus: O Convite à Celebração e ao Amor

A acusação de Judas vem insinuada em uma pergunta que parece inofensiva e simplesmente racional, mas esconde a sua maldade: “Por que não se vendeu o perfume por trinta denários e não se deu o dinheiro aos mendigos?” (Jo 12,5). Em outras palavras, é como se ele estivesse exclamando: “Que desperdício, vocês estão jogando dinheiro fora!”. O próprio texto bíblico explica que Judas não tinha verdadeira preocupação pelos mais pobres (Jo 12,6). 

A ideia do desperdício com o perfume caro que, ao invés, poderia ajudar os pobres, é mais uma armadilha do mal espírito que, em linguagem inaciana, se apresenta a nós na aparência de bem. Mas Jesus, treinado na arte de vencer tentações, mesmo que mais elaboradas e disfarçadas de luz, rebela com eloquência:

Deixa-a para que ela conserve o perfume para o dia do meu enterro. Os mendigos tendes sempre convosco; a mim não tendes sempre.

Jo 12,7-8

Jesus defende Maria do constrangimento que Judas a queria impor, dizendo que pode haver o tempo em que Ele não tenha mais a companhia de seus amigos e nem eles a sua. Então, é preciso desfrutar, celebrar e gozar esse momento da vida juntos, como um dom, o melhor que se pode. E a conservação, isto é, a privação, esta será vivida quando ela sobrevier se impondo, como é a morte. Nos dias de hoje, imagino Jesus dizendo “Judas, deixe para economizar quando, de fato, não tiver motivo para celebrar; Hoje, deixe Maria amar muito!”. Que economizar dinheiro não lhe impeça de celebrar a vida com os seus, enquanto você pode. Como Judas não gastava – nem se gastava em amor – com/para os demais, ele retinha e conservava apenas para si. Daí que não é surpresa que o texto bíblico o descreva como um ladrão que tomava para si do dinheiro comum do grupo.

Vergonha e Preconceito: A Luta contra as Armadilhas do Mal   

Já se perguntou por que pode ser tão difícil para um homem gay que viveu muitos anos no armário e para uma mulher que sobreviveu muitos anos sendo subjugada e com medo, terem consciência e desejo de cuidarem de si mesmos, darem-se ao prazer da celebração, do lazer e do gozo gratuito? Por que muitas pessoas não casadas, recasadas e LGBTs ainda se escondem sob o disfarce do desperdício ou do desnecessário quando se trata de celebrar publicamente seus próprios amores? Por que, apesar de zelosas com a saúde e o bem-estar de quem amam, muitas mulheres que viveram sob a dominação masculina encaram o autocuidado como desperdício, exagero ou desnecessários? Será que não percebem elas o desgaste que causam a quem se importa com elas, que vê sua tentativa de demonstrar muito amor sendo recusada como uma frustração?

São pessoas que estão contaminadas pela mesma armadilha do mal sob a aparência de bem que contaminou Judas. Elas foram feridas, e, por isso, nutrem um desprezo por si mesmas, que também impacta a vida de quem as amam. A falta de autocuidado hoje pode ter um preço alto não só para a própria pessoa, mas para aquelas que lhe são próximas e que eventualmente terão a tarefa de remediar a situação quando o cuidado for uma exigência imediata. Se mesmo nesse estágio mais crítico, o fechamento impedir a experiência do cuidado como demonstração de muito amor, tornar-se-á ainda mais dispendioso aos que são próximos cuidar de quem não permite ser cuidado.

Ingratidão e Negação dos Dons: Um Chamado à Aceitação

A pessoa que se apega a uma autoimagem negativa e não tem grande respeito por todos os dons recebidos, e pela presença atuante de Deus em sua vida através de todas as coisas, simplesmente não está sendo humilde (Contemplação para Alcançar Amor – EE 230-237). Na verdade, a pessoa, mesmo em sofrimento, está mostrando ingratidão a Deus, que lhe deu esses dons. Essa ‘ingratidão’ costuma ser fonte de muitos enganos e armadilhas do inimigo da natureza humana, tornando a pessoa amarga e dura. Ser LGBT é um dom, mesmo que exista o pecado da lgbtfobia; Ser mulher é um dom, mesmo que exista o pecado do machismo e do patriarcalismo; ser negro é um dom, mesmo que exista o pecado do racismo, etc… A Criação desejada e criada por Deus no amor, é criada na diversidade da criatividade divina, mesmo que exista o pecado que tenta obnubilar a beleza dos dons da Criação.

A pessoa com baixa autoestima ou que rejeita a si mesma, a quem Deus ama, oculta uma falsa humildade e um orgulho inflexível: ela se recusa a amar os dons e até mesmo a verdade do “eu” que Deus lhe dá. Essa é uma maneira enganosa de rebelar-se contra Deus: “Eu não vou gastar-me, é um desperdício!”. 

Judas: Uma História de Privação e Sofrimento

Não conhecemos muito sobre o passado de Judas antes de se juntar ao grupo de Jesus. Sabemos que Judas não buscou ajuda. O fechamento de Iscariotes em si mesmo o pôs em um sofrimento tão grande que acabou com sua própria vida (Mt 25,7). A “conservação”, isto é, a privação de gastar e gastar-se foi tamanha que ele sucumbiu ao sofrimento da solidão de sentir-se indesejado e indigno de viver no perdão. Temendo o desperdício, desperdiçou sua vida.

O Desperdício Aparente: Celebrar como Ato de Amor

Essa mentalidade preconceituosa do desperdício é um mal que ainda hoje tem muitos disfarces novos, pois, assim como o racismo, “é um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se mas está sempre à espreita” (Fratelli Tutti, n.97). Recuse-a. Renuncie à vida da privação dos afetos, à mutilação emocional dos amores, à vergonha do carinho e da amizade, ao medo da vulnerabilidade humana e à necessidade de apoio. Ame e deixe-se amar com coragem e generosidade. Jesus certamente se sentiu consolado com o gesto carinhoso de Maria. Celebre com carinho sempre e enquanto puder a verdade e realidade das pessoas que na sua vida são sinais da presença amorosa de Deus.

Assim, arrume um pretexto para estar junto das suas amigas e amigos mais queridos, reserve um tempo sagrado para as pessoas da sua família que você ama. Dê um presente a você e para quem mais tiver belos pés (Is 52,7) que caminham junto com você na estrada da vida. Deixe transbordar o amor de Deus que habita em você e faça uma extravagância, de vez em quando, como deixar a casa toda com cheiro de nardo puro e caríssimo (Jo 12,3). Comemore suas alegrias, case-se ou celebre o seu divórcio. Enfim, abra seu coração ao amor incondicional de Deus, passe um perfume e comece a festa! Não esqueça: Jesus era mais conhecido como comilão e beberão festeiro do que como homem de privação e jejum (Mt 11,18-19).

Perfume, Festas e a Vida em Abundância    

Ao final, a mensagem de celebração é clara: a vida deve ser vivida com intensidade, gratidão e abertura para o amor, mesmo em um mundo que frequentemente tenta impor privações emocionais e espirituais. Assim como Maria ungiu os pés de Jesus, todas as pessoas são convidadas a realizar gestos que expressem afeto, cuidado e celebração, reconhecendo os dons de Deus e compartilhando-os sem medo.


João Melo é professor, escritor e paulistano. Descendente de retirantes da seca de 1915, no Ceará e Piauí; e de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra Negra, em Itamarandiba (MG). É licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, mestrando em Educação na UERJ. Tem livros e artigos publicados em periódicos, revistas e portais digitais. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.

Imagem: Lígia de Medeiros. Passando para o outro lado. Azulejos e vinil.

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Descendentes dos retirantes que enfrentaram a seca de 1915 (PI/CE) e das apanhadoras de flores sempre-vivas ao pé da Serra Negra em Itamarandiba (MG). Paulistano que vive no Rio de Janeiro. Autor de “Entre Eva e Mapana” (Editora Pluralidades, 2023) e de livros da série “Ensaios Teológicos Indecentes” (Editora Metanoia, 2024).

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