Cristo Crucificado no Corpo, no Coração e no Coronavírus

Cyril Suresh, SJ

Neste tempo de crise, o povo de Deus se encontra, por um lado, com as festividades como Corpus Christi e Sagrado Coração de Jesus, e por outro lado, com as brutalidades como a pandemia do coronavírus, a violência do racismo e seus efeitos colaterais. Neste contexto tão crucial podemos escolher o tripé de Corpo-Coração-Coronavírus e meditá-lo numa ótica caleidoscópica ao fim de inspirar à nossa experiência da espiritualidade bíblica. O instrumento de caleidoscópio permite observar no reflexo as imagens fortes e belas em simetrias interligadas. Outro instrumento microscópio permite estudar as imagens não perceptíveis a olho nu, como vírus, aumentando as estruturas das pequenas coisas para poder ver por dentro os pedaços de micróbios do corpo que lutam pela vida. Para promover a saúde e a paz, o tecido da existência humana abatida pode ser estudado no acompanhamento global dos acontecimentos atuais. Com uma ótica corporal, cordial e moral, a metáfora do caleidoscópio e microscópio ajudam a examinar o espécime do corpo humano tão sofrido neste momento de isolamento social.

[A] Ótica Macro-Microscópica

No contexto de pandemia e de violência, as intuições bíblicas espiritualmente fortalezem o povo para resistir o mal e restituir o bem no caminho de Deus que assegura saúde e paz. Adentrando agudamente algumas narrativas bíblicas podemos capturar uma virada de mega-macro gigante para mini-micro insignificante e importante. Isto vai descortinando o poder teocêntrico e despedaçando o poder egocêntrico numa situação conflitante da história. Esse dinamismo de reviravolta pode ser observado nos retratos bíblicos, por exemplo, entre o povo autossuficiente e o modesto Noé na época de Dilúvio (Gn 6-8), entre o poderoso rei do Egito-Faraó e o pequeno sonhador José (Gn 39-41), entre o rei opressor Faraó e o pastor libertador Moisés (Ex 5-11), entre o povo egípcio enorme e o resto do Israel- povo pequeno, entre o gigante guerreiro Golias e o garoto Davi (1Sm17), entre os 450-profetas de Baal e o único profeta Elias no monte Carmelo (1Rs18), e assim por diante. Estes relatos exemplificam que os superpoderosos megalomaníacos foram derrubados e os insignificantes submissos a Deus foram protegidos e salvos. 

Na mesma sabedoria, Jesus em sua imbatível pregação parabólica compara com perspicácia o Reino de Deus com uma semente minúscula (Mc 4,26), com o grãozinho de mostarda (Mt 13,31; Mc 4,31), com o fermento (Mt 13,33), com um buraco de agulha (Mc 10,25), com perolazinhas (Mt13,45), com pitada de sal e pedaço de luz (Mt 5,13), e com outros tantos. Assim ele foi proclamando as coisas escondidas desde a criação do mundo (Mt 13,35) e convidando os seus ouvintes a esforçar-se por entrar pela porta estreita (Mt7,13; Lc13,24) do caminho que leva para a salvação. As autoridades inteligentes e poderosas não são capazes de perceber o Reino e sua sabedoria e justiça, mas sim, os pequeninos (Mt11,25). O caminho da paz está escondido até aos olhos da Cidade Santa com estruturas injustas (Lc19,42). Por isso, Deus derruba do trono os poderosos e eleva os humildes (Lc 1,52) e se revela aos pequeninos (Mt 11,25). O mistério escondido desde o começo dos tempos e gerações é revelado aos seguidores de Cristo Jesus (Cl 1,26) que os obriga servir os menores de seus irmãos, os pequeninos necessitados para herdar a vida eterna (Mt 25,40.45). Quem não quer amar e servir como Jesus não pode ser discípulo dele (Jo 12,26;13,14.34-35). 

Esta dinâmica vivificante do mistério de Deus tem seu lado oculto e escondimento. O agrado de Deus é esconder tal força viva aos soberbos e autossuficientes. Quer dizer, a força vivificadora de Deus nem sempre é mirabolantemente vistosa, mas timidamente escondida, prudentemente secreta e misteriosamente sutil. De certo modo, é invisível até o tempo maduro. Essa lógica de ocultamento tem a ver também com o contágio desvisto do coronavírus. É perceptível somente na hora drástica do vencimento e do sintoma monstruoso. É o micróbio pequenininho que afeta o macróbio do mundo inteiro. 

Jesus nunca deixou de ressaltar uma insaciável sabedoria do “ser pequenino e interdependente” que tem mais garantia de entrar no Reino do que ser um adulto prepotente com cabeça fechada (Mt 18,3). Os ditos sapienciais que Jesus cataloga têm um valor eticamente sagrado. O menor de todos se torna o melhor de tudo (Mt 13, 32). O maior de todo deve ser o menor de tudo (Lc 22,26). O maior do grupo deve ser servidor dele (Mt 23,11). Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos (Mt 19,30; 20,16). O servo fiel e prudente será nomeado o chefe de todo (Mt 24,47; Lc 12,44). Uma oferta de duas moedinhas por parte da pobre viúva foi melhor do que todos os outros (Mc 12,43). O Lázaro ferido e alienado foi beatificado e o rico soberbo foi condenado (Lc 16,19-31). O criminoso temente a Deus foi o primeiro que entrou no céu (Lc 23,43). Essa reviravolta messiânica de Jesus continuará infinita e surpreendentemente.

Um pensador moderno, Guy Debord (1931-1994), que escreveu “sociedade do espetáculo” tem alertado o nosso mundo megalomaníaco. Para ele, o espetáculo é uma relação social e interpessoal mediada por imagens virtuais que pretende ser absolutamente dogmático sem poder chegar a nenhum fundamento sólido. Isso porque o seu discurso espetacular silencia tudo o que é propriamente secreto, humildemente pequeno, virtuosamente escondido, timidamente pobre e ocultamente afastado das redes sociais.

A espetacularização rejeita tudo o que não lhe convém. Consequentemente o empobrecimento, a subordinação e a negação da vida real proliferam no contexto de fakenews, de aparência espetacular e de valores líquidos. O que está escondido não pode ser coberto por muito tempo; o que está esquecido não pode ser aniquilado; o que está oculto não pode ser emudecido; o que está longe do espetáculo deve ser também manifesto. A ilusão da aparecia sufoca a vida real. Com efeito, Jesus afirma: “Tudo o que está escondido deverá tornar-se manifesto, e tudo o que está segredo deverá ser descoberto; quem tem ouvidos para escutar, escute” (Mc 4,22-23).

[B] Ótica Corporal da Carne 

A festa de Corpus Christi ocorre 60 dias depois do domingo de Páscoa ou na quinta-feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade. Esta festa faz alusão à quinta-feira santa na qual Jesus instituiu o Sacramento da Eucaristia no Cenáculo. A procissão do Corpus Christi recorda também a caminhada do povo peregrino de Deus na busca da terra prometida do Antigo Testamento. Para melhor entender o significado do corpo e seus constituintes no mundo bíblico é importante relembrar a situação vital das duas culturas distintas: semita oriental e grego ocidental. São duas óticas complementares (cf. ARENS, E. A Bíblia sem mitos, São Paulo: Paulus, 2007, p.113-138).

(i). Mundo Semítico Oriental

Os semitas são eminentemente práticos. Dizem o que percebem e sintam. Aproximam-se do mundo e o escutam e lhe falam. Apaixonam-se pelo mundo, não tanto por sua beleza e aparência, mas por sua utilidade. Não busca tanto conhecer o mundo, mas governá-lo. Para eles, o conhecimento é relacionar e interagir com o mundo das realidades. Assim, a verdade é fazer concretamente o encontro de inter-relações. É aliança. Sua adoração a Deus é feita em espírito e verdade (Jo 3,21-26). Sua visão do mundo é empírica que afeta universalmente todos. O mundo está totalmente governado por Deus, Criador e Senhor do universo. E tudo está em Suas Mãos. É impossível ver uma coisa como tal, mas como Deus a ordena. Por isso, os judeus (semitas) pedem sinais (1Cor 1,22). Os milagres são obras prodigiosas, isto é, os acontecimentos admiráveis (miraculum) promovendo saúde e paz pela providencia divina.

Semitas movem-se antes pela ação e predominam em subjetividade e afetividade, buscando sua significação. Eles inclinam-se ao agir, articulando o que foi sentido nas emoções e nos afetos com relatos vivenciais. Todos os fenômenos naturais estão regidos por Deus: raios, trovões, ventos, terremoto, furacão, tsunami e pandemia que podem também ser expressões da ira ou da proximidade de Deus. É um ato dinâmico de teofania que simplesmente convoca a conversão ou transformação.

(ii). Mundo Grego Ocidental

Os gregos são eminentemente lógicos. Eles dizem algo como tal. Contemplam o mundo e o admiram. Perguntam-se pela origem das coisas, de si mesmo, e por sua razão de ser. Perguntam pelas essências. Para eles, o conhecimento é equivalente a definir as realidades e dominá-las. Assim a verdade é intelectual (discutir, deduzir, pensar) buscando objetividade, exatidão e compreensão. Eles analisam, definam, sistematizam apontando para a perfeição nas formas de conduta e harmonia. Eles inclinam-se ao contemplar, falando do que foi processado pela razão e pelas ideias com relatos filosóficos. Fundamentam-se no fato. O mundo é um sistema organizado que deve ser compreendido e contemplado. Por isso, os gregos pedem sabedoria, isto é, o conhecimento intelectual (1Cor 1,22).

(iii). Canal Complementar do Greco-Semítico

No idioma hebraico, o elemento mais importante é o verbo. É ação, relação, trabalho e testemunho, que significa muito. Centra-se nas coisas por sua utilidade, no que fazem. No idioma grego, o elemento mais importante é o substantivo (objetivação, definição e decreto). Centra-se nas coisas em si e em sua essência. O semita tem uma visão unitária do ser humano. Corpo é um todo com suas diversas manifestações. O grego tem uma ideia dualista que contrapõe “corpo e alma”, carne e espírito, etc. O semita pergunte: “quem é a pessoa humana?” O grego pergunte: “o que é a pessoa humana?” Isto tem suas implicações éticas. O semita quer escutar a Deus e lhe fala, se relaciona e se comunga. Para ele, Deus é uma relação de confiança, de diálogo bilateral e de aliança fiel. O grego quer olhar a Deus e o admira. Para ele, Deus é uma ideia potente e distante da criação e da materialidade.

Na mentalidade semítica, o ser humano era visto como totalidade – um só “eu” que manifesta de diversas maneiras como corpo, sangue, espírito e carne. A carne é a materialidade como tal, a que sofre, e com a morte se desintegra. O ser humano é corpo, não “tem” um corpo. É ser corpo, não ter um corpo. Corpo é designado por sua comunicabilidade e por sua extensão relacional. Para isso sangue e espírito (alento) se conotam vida. A linguagem de Jesus, na cultura semítica, “tomai e comei, isto é o meu corpo” (Mt 26,26) se significa “participar e entrar em comunhão comigo”. Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único (Jo 3,16). Jesus amou o mundo e se entregou a si mesmo por povo, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave (Rm 6,19). Todo povo é um só corpo em Cristo, e, cada um por sua vez, é membro dos outros em extensão (Rm 12,5). Nossos corpos são as células que formam o único corpo de Cristo. Há um só Corpo e um só Espírito (Ef 4,4).

O corpo do ser humano é um “ser-total” com a sua comunicabilidade (doação) na inter-relação. O Sangue (espírito pulsante, alento vivo) faz a vida vivente. O relato bíblico da criação (Gn 2,4-7) é geralmente compreendido como se a “alma” fosse um corpo etéreo soprado por Deus no barro que formou o ser humano. Isso é apenas uma interpretação. Em nenhum momento o texto da criação afirma que o ser humano é possuidor de duas essências diferentes: uma física-material, e outra imaterial-espiritual. O que Deus insufla nesse instante é a vida presente na dimensão do cumprimento do corpo e na dimensão evolucionária da sua necessidade vital (reprodução, fecundação). No mundo bíblico, não existe dualidade na essência do ser humano, mas sim a possibilidade da sua escolha de obediência e desobediência. A alma é parte integral do corpo. A carne é matéria física da existência humana. Os termos- carne, alma, matéria, espírito, etc. são aspectos diversos do único corpo íntegro do ser humano.

O ato comunitário e sagrado de comer a carne e de beber o sangue de Jesus, no seu símbolo de pão e vinho, é dom da vida de Jesus (Jo 6,51-58). Jesus explica o significado do sinal de pão e vinho. São símbolos da unidade de saúde e paz. Eu sou o pão da vida que desceu do céu (Jo 6,41-51). Isso evoca a tipologia do maná que desceu do céu no antigo Israel (Ex 16,13-35; Dt 8, 2-5.16). A saciedade material e espiritual aconteceu no passado pelo Pão-Maná e acontece hoje pelo Pão-Eucarístico, o corpo de Cristo. Comungar é saciar-se pela participação, pela comemoração, pela adoração e pelo comprometimento pessoal e comunitário com a vida de Cristo. Existe um mandato especial na palavra consagrada de Jesus- “isto é meu corpo dado por vocês e façam isto em memória de mim” (1Cor 11,23-26). Um memorial vivo da carne (vida humana) e do sangue (morte violenta) faz do povo o corpo místico de Cristo Jesus- o encarnado-crucificado-ressuscitado.

[C] Ótica Cordial do Coração

A festa de Sagrado Coração de Jesus ocorre na sexta-feira, 8 dia depois da festa de Corpus Christi. Essa festa faz alusão à sexta-feira santa na qual Jesus foi crucificado no monte Calvário. O seu lado foi aberto na cruz e daí gotas de água e sangue escorregaram (Jo 19,34) e o povo olhe aquele que foi transpassado (Jo 19,37). Isto, por sua vez, remete ao Sacramento Eucarístico bem celebrado no Cenáculo.

Anatomicamente o movimento merismático do corpo vivo se diz da multiplicação que se realiza pela divisão das células atómicas. A narrativa bíblica utiliza um gênero especial – “merismo” que apresenta as duas partes de uma só totalidade em prol de conter a ênfase pluriforma, a memória facilitadora, o sabor enfático, a multiplicidade evolvente sem desconexão. O termo “merismo” vem do verbo grego merizo (μερίζω) que significa dividir, separar, partir, distribuir, repartimento, etc. Na análise narrativa, o merismo tem dois elementos em contraste que juntos compõe um todo. É um termo retórico a um par de contrastar as palavras, por exemplo, o corpo e a alma, a vida e a morte, que se utiliza para exaltar a totalidade ou integridade.

O merismo, como enumeração das partes, é utilizado também na narrativa bíblica para exprimir a totalidade do universo criado, mencionando as partes dos extremos, por exemplo, o céu e a terra (Gn 1,1), vento e mar (Mc 4,41), sol e lua (Sl 121,6), mão esquerda e mão direita (Ct 8,3), alma e Corpo (Mt 10,28), alfa e ômega (Ap 21,6), oriente e ocidente (Lc 13,29), o que foi e o que vem (Ap 11,17), amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma (Mc 12,30), alma e espírito se encontram, até onde as juntas e medulas se tocam (Hb 4,12), o Antigo Testamento e o Novo testamento, etc.

O merismo é notável na formula do voto matrimonial no qual os noivos se prometem ser fiéis para amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da sua vida. Uma vez bem casados, os dois, marido e mulher, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu o homem não deve separar (Gn 2,23-24; Mc 10, 7-9).

O merismo pode ser considerado como um tipo de sinédoque, que é uma figura de inclusão em que ocorre substituição da parte pelo todo, ou vice-versa. Certamente o merismo não é antíteses que coloca em contraste as palavras em frente à outra, mas é figura de adição amplificando o sentido progressivo. Tradicionalmente o grego dualístico contrapõe corpo e alma, mas o semita oriental sabiamente coloca junto o corpo e a alma como um todo íntegro. A palavra “coração” é uma sinédoque que inclusivamente se representa a totalidade do ser corpo vivo. 

No mundo bíblico, o coração é a sede da inteligência e da vontade humana. Ele é a rede das relações afetivas e a matriz da existência humana, contrapondo o sentimentalismo emocional e desequilibrado. Ele é o âmago da devoção e da espiritualidade cristocêntrica cuja fonte é o amor preferencial. Isto é, Deus escolhe o que é pequeno e enfraquecido (Dt 7,7). Deus não é ideia abstrata, como no helenismo. Deus é Aquele que quer se revelar aos pequeninos. Pela natureza, Deus é manso e humilde de coração com seu fardo suave e seu jugo leve (Mt 11,25-30). Deus escolhe o seu povo no amor e no pertencimento como nação consagrada (Dt 7,6). Deus é amor e foi o Primeiro que amou o seu povo (1Jo 4,7-16).

Um lado, o helenismo equivoca com um amor “platônico” desencarnado, e por outro lado, o romantismo exagera a emoção e menospreza a ação. No entanto, o cristianismo afetivo, puro e cordial exalta o compromisso ético e o amor predileto para os humildes e os pequeninos marginalizados. O coração deste amor bíblico é ágape, quer dizer, o amor de doação, de desprendimento, de despojamento e de esvaziamento condescendente.

[D] Ótica Moral do Coronovírus

Os pulmões do planeta, do corpo humano e dos oprimidos estão sufocados de exploração injusta e contaminação tóxica. E está faltando o ar para respiração e a saúde para vida. Papa Francisco, na encíclica Laudato Si’ (2015), destaca uma ecologia integral e comunhão universal na qual tudo está intimamente inter-relacionado (n° 137) e a interdependência obriga-nos a pensar num único mundo e num projeto comum (n° 164).

A pandemia do coronavírus é uma teofania que desvenda o privilégio único de repensar o nosso jeito de viver e de habitar neste corpo cósmico do universo sem violência e matança. A força invisível do microrganismo é inimaginavelmente construtiva ou destrutiva, dependendo da nossa inter-relação. O confinamento social e o isolamento sanitário avaliam o sistema das economias e políticas, muito injustas. O sacrifício altruístico de tantas pessoas, os médicos, os trabalhadores da saúde publica, as vítimas da covid-19 e outros, também conta muito com a vida doada de Jesus Cristo, que se encarnou no corpo humano para estabelecer a vida abundante (Jo 10,10).

Deus dá a cada uma das sementes o corpo que lhe é próprio e nenhuma carne é igual às outras (1Cor15,38-39). Pelo mistério da ressurreição, todos os corpos serão transformados na incorruptibilidade e imortalidade (1Cor 15,51-53). Assim, o corpo humano é destinado à transformação constante. Sabemos bem que o corpo e a alma são entidades relacionais do único ser humano- indivíduo, indivisível, insubstituível, indissociável e infectável. Não existe paz sem justiça. O sangue de Abel que clama ao Céu (Gn 4,10). O significado do nome Abel é o alento de Deus. Na violência e na pandemia o alento dos muitos irmãos, como o do Abel, também clama ao céu. O sangue de Jesus que foi derramado em favor dos muitos povos (Mc 14,24) é nossa justificação e reconciliação. Como na vida de Jesus, os nossos ditos e feitos devem ser correspondidos na justiça. Senão, todo aquele que diz ‘Senhor, Senhor’, não vai entrar no Reino, mas aquele que põe em prática a vontade de Deus- o Pai de todos (Mt 7,21). Nem todos que comiam e bebiam na presença do Senhor Deus vão encontrar a porta aberta no céu, mas aqueles que praticam a justiça de Deus (Lc 13,25-27). Aqui a atenção é fixada na construção da vida comunitária e fraterna com paz e justiça.

O corpo é responsável por uma intrincada rede de relações psíquicas e espirituais. Portanto, proporcionar saúde e paz evitando violência e doença qualquer, é uma responsabilidade comunitária para todos. Adão (אדם- húmus, terra) é símbolo do corpo humano para escutar a sabedoria de Deus da aliança. Abraão (אב-abba, pai, patriarca) é símbolo do corpo social para construir a nação santa. Isaac (צָחַק – filho da felicidade) é símbolo do corpo filial para fecundar a relação respeitosa com outros sem racismo. Jacó (עֲקֵב- pé, raiz) é símbolo do corpo tribal para enraizar a multiplicidade das identidades. Cristo (χρίω – ungir) é símbolo do corpo cósmico consagrado a Deus da salvação, da saúde e da paz. A Palavra se fez Corpo humano (Jo1,14). O corpo de Jesus foi cristificado na Cruz, transubstanciado no ‘pão e vinho’ da Eucaristia e consagrado no Coração.

A graça atuante de Deus, sem dúvida, trabalha em prol da saúde, da cura, da reconciliação e da salvação, através do esforço humano e do hábito de alimentação material e espiritual. Por exemplo, sal e luz, ar e agua e tudo pode enriquecer o alimento, o sentimento e o pensamento a favor da saúde. Uma sabedoria bem prática não custa nada para adotar certo mecanismo de autodefesa do corpo que revitaliza e ressuscita a imunidade diariamente. Por exemplo, fazer gargarejo com água salgada e nebulização com água quente, tomar sol, chá e suco de frutas (vitamina-C), incluir no alimento gengibre, alho, açafrão etc. são indicações básicas para cuidar o corpo padecido nesta pandemia. O uso de máscara é inevitável para diminuir proliferação e infecção enquanto o exercício de respiração junto com a meditação da Palavra auxiliaria o corpo desfrutar a saúde física e mental.          

Cuidar e curar, o corpo doente e o mundo ferido (a casa comum), é exercício comunitário e responsabilidade concomitante de todos. Um adágio famoso atribuído a Jesuíta, Teilhard de Chardin (1881-1955), que diz:

Não somos seres humanos, vivendo uma experiência espiritual, mas somos seres espirituais, vivendo uma experiência humana.

Para tanto, não endurecimento de coração, mas amadurecimento espiritual e enriquecimento integral do corpo nos capacitam a nutrir o cuidado da saúde e do diálogo da paz até nas relações interpessoais e microbianas.


Cyril Suresh Periyasamy é padre jesuíta, vigário da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em João Pessoa (PB). Ensina Sagradas Escrituras no Seminário Arquidiocesano da Paraíba. Nasceu na Índia, onde graduou-se em matemática e fez pós-graduação em filosofia. No Brasil, graduou-se em teologia na Faculdade dos Jesuítas de Belo Horizonte, onde fez mestrado em teologia bíblica. [saiba mais]

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IGNATIANA é um blog de produção coletiva, iniciado em 2018. Chama-se IGNATIANA (inaciana) porque buscamos na espiritualidade de Inácio de Loyola uma inspiração e um modo cristão de se fazer presente nesse mundo vasto e complicado.

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