Gratidão: virada de ano, virada de chave

Luiz Beltrão

Ao se aproximar a virada de ano, nada mais natural e instintivo que fazer um balanço do que passou, assim como planos para o período que chega. E todos os anos repetimos esse ritual de avaliação e planejamento, no entanto, sem que algo efetivamente novo aconteça. Na maioria das vezes estamos imersos numa espiral repetitiva. Quando muito, adotamos alterações cosméticas que não promovem algo significativo e definitivamente inédito. Rapidamente vivenciamos os mesmos problemas, para os quais oferecemos as mesmas soluções; permanecemos assim no ritmo frenético de atividades sem fim e continuamos a cultivar relações com a mesma qualidade de sempre. Para alterar o curso precisamos de uma chave capaz de abrir uma nova porta e nos introduzir numa sintonia qualitativamente diferente, dinâmica e vivificadora, impressora de sentido e ardor. Gratidão, entendida mais profundamente, pode ser a ferramenta que nos proporcione essa experiência.

Normalmente, associamos gratidão com o ato de agradecer. Sem dúvida, passa por aí. Mas aí não permanece. Agradecer implica reconhecer que aquilo que é recebido não provém de si. É justo e necessário, portanto, render graças àquele que ofereceu o bem recebido e percebê-lo com dom e gratuidade. O primeiro a merecer tal reconhecimento é o próprio Deus, fonte e autor da vida e de tantos dons imerecidos. Aquele que é marcado pela experiência de que tudo é dom, doado gratuitamente, generosamente e por amor por Deus, adquire a fina percepção de que também somos “agraciados”, “cheios de graça”, do que decorre o nosso coração, como o de Maria, exultar num canto de alegria.

Gratidão pressupõe reconhecer, rever e saborear a experiência da recepção do dom. É, por isso, uma atitude memorial, que revive, atualiza e aprofunda a vivência. Enquanto a memória da mente é a lembrança, a memória do coração é a gratidão (Paul H. Dunn). Ao fazermos memória do dom recebido, experimentamos a leveza dessa recepção, pois que é imerecida, e a beleza daquele quem a proporcionou. Brotam do coração agradecido a atitude do louvor, do encantamento e, por consequência, a experiência da alegria, da ternura e da confiança. Pelo exercício da gratidão o coração se dilata, porque continuamente se abre a receber, num ciclo virtuoso, mais e mais Daquele que é pródigo e generoso em se derramar. É uma ciência muito mais afetiva que intelectual, muito mais sensitiva que racional. Exatamente por isso sinônimo de memorizar é saber de cor, isto é, saborear a partir do coração. Não há maneira mais leve, mais fluida, mais límpida de viver que a partir da gratidão! E, inversamente, não há maneira mais amarga, mais triste e mais árida que viver a partir da ingratidão!

Até aqui estamos no âmbito do agradecimento, uma postura essencialmente passiva diante do bem recebido. Mas para alavancar algo realmente novo e definitivo necessitamos avançar e compreender gratidão como ação de graças; ação porque pressupõe movimento de nossa parte. Aqui a espiritualidade inaciana tem algo a dizer, pois entende gratidão como oferecimento. Por reconhecer que tudo é dom, doado generosamente e por amor, para o Peregrino a única resposta vital possível é a oferta de si, a entrega generosa e incondicional de tudo o que se é e possui. Se ele recebeu, reconhece, a partir do coração, que o dom não é originariamente seu. Por isso, é de justiça restituí-lo ao seu legítimo dono.

É desde aqui que se entende o Suscipe inaciano [EE, 234}, a oração que coroa a Contemplação para Alcançar Amor: “Tomai e recebei, Senhor, … Vós mo destes; a Vós, Senhor, o restituo. Tudo é vosso, disponde de tudo, à vossa inteira vontade…”. Para Inácio, o “alcançar o amor” não é chegada merecida após um esforço pessoal, mas o resultado de, como S. Paulo, ter sido alcançado por Cristo (Flp 3,12).

Porém, na perspectiva do magis, S. Inácio não devolverá os dons da mesma maneira que os recebeu. É preciso, a partir do coração “co-movido”, fazer o dom frutificar, o investimento render, em vista do bem maior, da maior glória de Deus, a partir da colaboração única e distintiva que cada um pode dar. Jamais ser identificado com o trabalhador preguiçoso, que escondeu e guardou para si o talento recebido, porque isso é ingratidão (Mt 25,14-30). É necessário não apenas retribuir a graça de graça, mas com graça, com o toque único e irrepetível que cada um pode dar a partir do seu coração agradecido.

Gratidão, assim entendida, equilibra passado (memória), presente (reconhecimento) e futuro (oferta), livrando-nos dos excessos e dos males que caracterizam nosso tempo: depressão, excesso de passado; estresse, excesso de presente; e ansiedade, excesso de futuro. Vive-se a vida de maneira leve e lúdica, mas com os compromissos necessários para a transformação de si e da história, em vista da superação de suas incoerências, mazelas e injustiças.

Em outras palavras, gratidão não é alienação, mas o justo tempero entre encantamento e indignação, reconhecimento alegre do que se recebeu e do quanto a realidade está distante do que ela é destinada a ser. Pressupõe olhos abertos e sensibilidade, segundo os critérios de Jesus, em especial de inclusão e misericórdia, busca da justiça e posicionamento incondicional ao lado dos que mais sofrem. Por isso, gratidão é “pro-vocação”, chamada para a frente, convite a nos implicar ativamente no projeto do Reino, até que “Deus seja tudo em todos” (1 Cor 15,28).

Neste final de ano, somos convidados a refletir, na mais estrita acepção da palavra: fazer uma flexão, uma volta sobre si mesmo, para nos redirecionarmos à fonte do nosso ser, Àquele que nos amou primeiro e nos abençoou com toda a benção espiritual em Cristo (Ef 1,3):

  1. Reconhecer os talentos, os dons, as graças que recebemos ao longo do ano;
  2. Saboreá-los, enquanto presentes oferecidos livremente e por amor;
  3. Avaliar, a partir do coração, se os temos utilizado corretamente e
  4. Restituí-los ao seu legítimo dono e àqueles a quem ele o desejar, acrescidos da melhoria própria e distintiva de nossa colaboração.

Nessa perspectiva, o ano novo será vivido não apenas como kronos, sucessão indefinida de instantes, mas como kairos, tempo de graça, de festa, de vitalidade. Estaremos enraizados no ontem, ativos no hoje, construindo um amanhã cada vez mais pleno para todos.

Que tal, por meio da gratidão, vivermos não apenas a virada do ano, mas a virada da chave que nos lançará de cheio numa nova atitude de vida? Apenas daí é possível firmar projetos significativos, verdadeiramente novos, capazes de nos abrir uma perspectiva de encantamento e transformação de nós mesmos, de nossas relações e do mundo.

Espiritualidade cristã

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