Os bens materiais: justiça de Deus e conhecimento dos homens

Oscar Romero *

RomeroMartirDaJustica (1)Isso é mais sério, ou dizendo melhor, os bens materiais mais visíveis. Alguém me disse uma vez: “Em vez de seus discursos inflamados, por que não simplesmente ler o Evangelho?”. E a mim ocorreu que não poderia fazer outra homilia hoje que não fosse ler o texto da Carta de São Tiago. Vejam se há algo mais inflamado do que São Tiago quando hoje ele nos diz:

Agora, vocês, os ricos, chorem e lamentem pelas desgraças que os tocaram. Sua riqueza está corrompida e suas roupas estão roídas por traças. Seu ouro e sua prata estão enferrujados, e essa ferrugem dará testemunho contra vocês e comerá sua carne como fogo(aplausos)

Para registro, conste que estão aplaudindo o apóstolo São Tiago… E ele continua:

Vocês acumularam riqueza precisamente agora, no tempo final! Os salários que não pagaram aos trabalhadores que colheram em seus campos estão clamando contra vocês; e os gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Vocês viveram neste mundo com luxo e entregues ao prazer. Vocês engordaram para o dia do abate, condenaram e mataram o justo; Ele não resistiu a vocês.

Aqui não encontro mais nada para agregar ao pensamento de São Tiago, os três grandes males da riqueza quando se abusa dela. Não se condena a riqueza, mas o abuso da riqueza.

A primeira coisa é absolutizar um bem limitado. Sua abundância injusta é testemunho contra o próprio dono. Quando ele fala sobre o ouro que fica mofado, e sobre uma abundância de roupas que estão se desfazendo, em vez de dar aos pobres, ele está dizendo que a abundância é um testemunho, que você não tem que absolutizar o que tem, mas compartilhar.

Isso é o segundo: perverter a finalidade da riqueza. Compartilhar com os trabalhadores que te ajudaram a realizar a colheita…

E o terceiro, o que digo em minha carta pastoral, destruir o proprietário injusto. A idolatria da riqueza não só ofende a Deus, mas também destrói aquele que a possui. E é isso que São Tiago diz na Carta de hoje: “…vocês viveram neste mundo com luxo e entregues ao prazer, vocês engordaram para o dia do abate”.

No domingo passado, eu não me lembrava do autor da frase que citei em italiano e quando saímos, a televisão italiana que estava conosco me disse: «Essa frase é do cardeal Montini, quando era bispo de Milão. O Papa Paulo VI, dizem, chamou todos os empresários de Milão e disse-lhes essa famosa frase: “Spogliatevi, se non, vi spoglieranno”», ou seja: “Despojem-se, senão despojarão vocês”. Eu acredito que antes que nos tirem pelo sangue e pela violência, vamos dar por amor…

E já que estamos também falando de João Paulo II [que estava em viagem apostólica aos EUA e à ONU – nota do trad.], queria fazer um acordo com todos vocês e com os que estão nos ouvindo pelo rádio: vamos aceitar tudo o que o Papa disser nas Nações Unidas e que nossos jornais não manipulem somente um aspecto da notícia…

Eu quero dizer-lhes desde já que quero ser fiel ao Papa até a morte e que o que diga João Paulo II nas Nações Unidas será uma orientação também para mim; eu tratarei de repetir e de acomodar meu pensamento — como sempre faço — ao pensamento do Magistério do Papa, que fala em nome de Deus…

Veja como, em Puebla, o Papa, quando diz aos bispos: “Vocês são defensores e promotores de dignidade [humana]” e recorda como a história da Igreja recolhe figuras de bispos profundamente comprometidos com a defesa corajosa da dignidade humana, daqueles que o Senhor lhes confiou. Disse: “Nasce — são palavras de João Paulo II em Puebla —  constante preocupação da Igreja com a delicada questão da propriedade. Uma prova disso são os escritos dos Padres da Igreja, ao longo do primeiro milênio do cristianismo”. Quem lê os padres dos primeiros séculos, francamente, já poderia chamá-los de comunistas e não são mais do que os intérpretes da doutrina tradicional da Igreja.

Aqui cita Santo Ambrósio e outros papas e diz “demonstra claramente a doutrina vigorosa de São Tomás de Aquino, repetidas muitas vezes, o grande teólogo da Idade Média, fala que a propriedade privada não é um direito absoluto, mas relativo. Em nossos tempos — palavras do Papa — a Igreja fez apelos aos mesmos princípios em documentos de tão grande alcance, como são as encíclicas sociais dos últimos Papas. Com uma força e profundidade particulares, o Papa Paulo VI falou sobre este tema em sua encíclica Populorum Progressio.

Esta voz da Igreja, eco da voz da consciência humana, que não parou de refletir através dos séculos entre os mais variados sistemas e condições socioculturais, merece e precisa ser escutada também em nossa época, quando o aumento da riqueza de uns poucos segue em paralelo à crescente miséria das massas…

“É então, continua João Paulo II, quando o ensinamento da Igreja adquire um caráter urgente, segundo o qual sobre toda propriedade privada é cobrada uma hipoteca social”.

Outro dia, alguém me disse que eu não tinha entendido esta frase, e se alguém precisar de explicação, o Papa quer dizer que, assim como quando alguém tem uma casa hipotecada, ela não é toda sua, se você não pagar a dívida, ela será retirada de você. O Papa diz o mesmo: a propriedade privada, mesmo que você tenha feito todos os registros e todas as escrituras, não é um direito absoluto – ela está hipotecada ao bem social e o bem comum é o sentido para a propriedade privada. É por isso que dizemos ser necessária uma reestruturação do nosso sistema econômico e social, porque não pode ser esta absolutização, essa idolatria da propriedade privada que é, francamente, um paganismo! O cristianismo não pode admitir propriedade privada absoluta…

“Com relação a este ensinamento, diz o Papa, a Igreja tem uma missão a cumprir: deve pregar, educar as pessoas e as coletividades, formar a opinião pública, orientar os responsáveis ​​pelos povos. Desse modo, estará trabalhando em favor da sociedade, dentro da qual este princípio cristão e evangélico acabará dando frutos de uma distribuição mais justa e equilibrada dos bens, não só no interior de cada nação, mas também na esfera internacional em geral, impedindo que os países mais fortes usem seu poder em detrimento dos mais fracos”. Eis a Carta de São Tiago Apóstolo, atualizada e para a América Latina, por João Paulo II.

Portanto, quando somos criticados por estar aqui pregando ideias inflamadas, nós dizemos: não estamos fazendo nada mais do que recordar um princípio que foi esquecido e que é necessário para a base das transformações da nossa sociedade. Se queremos que a violência cesse e acabe todo esse mal estar, devemos ir até a raiz. E a raiz está aqui: a injustiça social…

É necessário educar-se, como diz o Papa, e, aqui, desde a Palavra de Deus, faço um chamado a todos os queridos irmãos salvadorenhos, especialmente àqueles que perverteram em sua mente e em seu coração, em seu apego, a verdadeira doutrina cristã da propriedade privada: que eles revisem e verão que serão mais felizes quando, por amor, se desprenderem para seus irmãos e compartilharem com todos o que não seria felicidade se desfrutassem sozinhos.

Catedral de San Salvador, 30 de Setembro de 1979.

 


XXVI Domingo do Tempo Comum – Ano B.
Das homilias de Oscar Romero. Tradução de Dalmo Coelho.

* Dom Oscar Romero (1917 – 1980),  foi  arcebispo de San Salvador no período de  1977 a 1980.

Justiça e Paz

2 comentários Deixe um comentário

  1. Dom Oscar Romero, pastor que denunciou as injustiças sociais sofridas pelo seu rebanho. Uma voz profética no seu país, na América Latina. Deus seja louvado!

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  2. Muito adequado p nosso momento, embora o texto refira a proprietários de terra q não pagam os salários dos seus trabalhadores do campo. No momento atual, depois de trabalhar mais de 20 anos c população deixada na pobreza, adolescentes postos nas ruas, avalio q pouco vai adiantar em dividir o seu c os pobres pois não vai resolver. Entendo hoje q só um tipo de governo q busque diminuir a pobreza c ações sociais como educaçao integral p crianças e jovens, moradia, trabalho, saúde, etc. resolveriam o problema da pobreza. E Isto diz respeito ao tipo de modelo de governo adotado. O modelo social ou socialista poderia resolver o problema da pobreza mas a classe média e os ricos entram em pânico só c a palavra socialista.

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